Em um movimento quase instintivo, atividades em águas marinhas viram opção à clausura e registram aumento histórico durante a pandemia
Com o novo coronavírus ainda circulando por aí e exigindo cuidados, muita gente garimpa espaços abertos no leque variado que o Rio tem a oferecer e, em um movimento quase instintivo, acaba por encontrar o mar. É cada vez mais graúda a turma que aluga barcos em busca de novos ventos na Baía de Guanabara e arredores. Esse gênero de turismo, tão comum noutras praias, como nas de Angra dos Reis e da Ilha Grande e nas bandas europeias, era pouco difundido nas fronteiras cariocas, mas aí veio a pandemia e deu uma chacoalhada no modo como as pessoas se entretêm. “Quando reinauguramos a Marina da Glória, no fim de 2016, havia basicamente os passeios de saveiro e escuna. Faltavam alternativas mais personalizadas, ao gosto do freguês”, avalia Gabriela Lobato, CEO da BR Marinas. E elas vieram junto com a necessidade por lazer ao ar livre e escapulidas da reclusão. “Pulamos de três ou quatro embarcações para as cinquenta de hoje”, calcula Gabriela.
A bordo de lanchas, veleiros e iates, os passeios descortinam paisagens deslumbrantes que proporcionam saudável contato com a natureza distante das aglomerações. Os roteiros mais usuais duram de três a seis horas e percorrem pontos da Guanabara de onde se avistam, de pertinho, a Ilha Fiscal, praias do Rio e da região oceânica de Niterói, o arquipélago das Cagarras e as Ilhas Tijucas (esses dois últimos, aliás, destinos indicados para a prática de mergulho). O público da dolce vita aquática não só cresceu, como deu uma mudada de perfil na pandemia, segundo conta um dos pioneiros na Marina, Cassio Gurjão, da Sail in Rio. Com o turismo estrangeiro por ora freado pelo vírus, antes responsável pelo maior quinhão de sua renda, ele viu a clientela local multiplicar-se por dez — neste fim de 2020, contou 200 cariocas flutuando em suas embarcações. “Para eles, a baía era sinônimo de poluição. A maioria dos moradores da cidade nunca tinha experimentado o programa e se surpreende com as belezas com que esbarramos no caminho”, afirma Gurjão, que já presenciou até pedido de casamento em seu veleiro de 40 pés, onde se alojam até dez pessoas.
Cada grupo escolhe o próprio trajeto e assim vão se achando verdadeiras preciosidades marítimas. Um exemplo é a Praia do Morcego, uma enseada selvagem e de difícil acesso por terra que se forma ao pé de morro homônimo, em Niterói. “Gosto de ir até lá porque dá para nadar até a areia e relaxar”, conta Ivan Hermolin, da lancha Fanfa, que registrou 50% de subida na procura por passeios. “A maior parte é de cariocas que não têm viajado e que vão atrás de uma atividade para a família sem aglomeração”, confirma a tendência. Criado na Ilha da Coroa, onde mora, na Barra da Tijuca, o profissional de marketing Guilherme Braga mantém íntima relação com o mar desde pequeno. “Meu pai tinha barco, comecei a velejar e a mergulhar muito novo”, lembra ele, que transformou o hobby em renda. Proprietário de dois veleiros, Guilherme criou a Rio Boat Experience, que oferece a chance de nadar com tartarugas, observar pássaros marinhos, surfar em praias inabitadas e até praticar caça submarina. “O Rio de Janeiro é uma metrópole que permite mudar inteiramente de ares sem sair da cidade. Em cinco minutos, você pode estar imerso na natureza, sem poluição sonora nem pessoas por perto”, ressalta.
Há fartura de exemplos em que a paisagem carioca se impõe. As saídas da Rio Boat Experience, pela manhã, passam pela Joatinga e logo se aporta nas Ilhas Tijucas, onde águas calmas e cristalinas para o banho e saltos do costão de pedra em diferentes níveis aguardam os navegantes. O aluguel (250 reais por pessoa, em média) inclui os equipamentos, como snorkel, pé de pato, coletes, arpões, roupas de borracha e flutuadores. Poucos pontos na cidade são tão aprazíveis para o mergulho — é frequente cruzar por lá com tartarugas marinhas. Quem quer um bom tour submerso ou pretende explorar vistas novas encontra no Guia de Biodiversidade Marinha e Mergulho das Ilhas do Rio uma boa referência. Lançado no ano passado pelo projeto Ilhas do Rio, mapeou a fauna e a flora marinha e terrestre da área, identificando mais de 600 espécies. Entre julho e outubro, com um pouco de sorte, é possível bater os olhos em baleias jubartes a caminho do Nordeste.
À medida que a procura aumenta, o mercado evolui a todo o vapor, facilitando a vida dos que acham que navegar é preciso. Há dois anos, Marcus Cabral criou o Navegue Now, aplicativo que faz a ponte entre donos de embarcações (são mais de 150 cadastrados) e interessados em alugá-las. O número de usuários dobrou de agosto a novembro do ano passado, alcançando 10.000.
A média mensal de consultas foi a 1 200, 167% mais que no mesmo período de 2019. “O rápido crescimento em 2020 foi impulsionado pelo mercado interno e ocorre de forma gradativa, inclusive com o aumento na compra de barcos e megaiates. Não é moda passageira”, aposta Cabral, que acaba de lançar o Táxi Boat Now, um app de transporte aquático nos moldes do Uber para as regiões de Angra e Ilha Grande.
Os números mostram que o barco foi alçado ao rol dos desejos familiares. “Nossa demanda triplicou e não estávamos preparados para atendê-la. Só não crescemos mais porque começou a faltar matéria-prima no mercado”, afirma Paulo Tadeu, presidente da Real Powerboats, o maior estaleiro carioca, e vice-presidente da Associação Brasileira dos Construtores de Barcos e seus Implementos (Acobar). Segundo ele, a solicitação de vagas em marinas registrou avanço de mais de 10% no Rio e superior a 20% na Baía de Angra dos Reis. A onda segue animadora no comércio de barcos usados e nas escolas náuticas. Sócio da CL Vela, há duas décadas na Marina da Glória, Lula Evangelista diz que sua turma de alunos saltou para 180 em outubro, 50% mais que no mesmo mês em 2019. A disparada se deve aos cursos individuais de vela e de habilitação náutica, que dão a permissão para pilotar. “As aulas teóricas têm sido ao ar livre e vai só o aluno no veleiro, enquanto o professor fica num bote ao lado. O distanciamenté total”, explica Evangelista.
A aventura pode se esticar em viagens de três a seis dias. Nessa modalidade, a Costa Verde reserva os melhores destinos no estado, sobretudo Ilha Grande, Angra dos Reis e Paraty. “São lugares com mares mais calmos e, por isso, dormir a bordo é confortável”, fala o expert Marcelo Pellerano, da Rio Sailing, que costuma atracar nessa rota paradisíaca. “O barco é uma casa ambulante”, resume. Partindo do Rio ou de Niterói (prepare-se para saídas às 3 da manhã), são de oito a dez horas até Ilha Grande, dependendo da intensidade do vento. Logo nas primeiras horas, a luz do crepúsculo, com o sol nascendo e lua se pondo, oferece espetáculo memorável. “A experiência me deu uma sensação de liberdade e me aproximou muito da minha família”, entusiasma-se a pedagoga Priscilla Santos, que tem feito travessias (é assim que ela já fala) acompanhada do marido e do filho de 12 anos. Pela Rio Sailing, a diária de um veleiro de 36 pés com capacidade para quatro pessoas (há dois quartos de casal, um banheiro, sala e cozinha) sai por 1 800 reais, com café da manhã e roupa de cama. Incluídos, vento no rosto e paisagens sem igual.
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